Ilustração Mani Ceiba
Flávia Fernando
Era pra ser um canto de liberdade
Um canto, ainda que chamuscado, das faíscas que queimaram os corpos de nossas irmãs, outrora
Aquelas, curandeiras, sabedoras de si
Dos seus feitiços fizeram argumentos de acusação do mal
Era pra ser um canto de liberdade
E é assim meio tonto, meio vertigem
Canto de banzo, de maresia
Canto de navio, de sequestro, de corrente
De fel da diáspora
Pedaço de saia
Boneca sem olho
Brinquedo acalanto, nas noites do mar
Era pra ser um canto de liberdade
E foi estilhaçado de espelho, sífilis, de roubo, dizimação
Canto silenciado, negado
Sem lugar em meio ás violências todas, os tantos açoites
É também um canto quase réquiem
Pelos companheiros que se foram
Os filhos levados
O sumiço das nossas histórias
E delas fazem
Ficha policial, estatística, categoria diagnóstica
Tentam se apossar
Do nosso útero, da nossa cabeça, do nosso desejo
Da ancestralidade que nos funda
Tentam, mas não conseguirão!
Era pra ser um canto de liberdade
E foi trincado
Trincado pelas grades
Dos manicômios, prisões e conventos
Disseram-nos bruxas, loucas e histéricas
Dizem-nos drogadas, perigosas, macumbeiras, vadias
E somos mesmo!
Era pra ser um canto de liberdade e é-
É um grito, um uivo
Um oceano revolto no olho
Um suspiro, um cansaço
Um suspiro, um cansaço
Da violência do não pertencimento
Da expropriação de nós mesmas
Do saque de todo dia
Mas esse canto, rouco, torto, tonto
Só se faz ponto,
Se firma ponto
Se um verso de uma chama tambor do coração da outra
Pelo o desejo de liberdade de existir
De ser quem a gente é
De não negar as diferenças
De negociar os egos, privilégios
E seguirmos
Escapando da morte e da prisão
Do patriarcado e do racismo
Fabricando outros espaços-tempo-respiração
Juntas- VIVAS!
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