segunda-feira, 14 de junho de 2021

Era para ser um canto de liberdade (às mães que perderam os seus filhos, às mulheres encarceradas de todas as formas)

 

Ilustração Mani Ceiba


Flávia Fernando

Era pra ser um canto de liberdade

Um canto, ainda que chamuscado, das faíscas que queimaram os corpos de nossas irmãs, outrora

Aquelas, curandeiras, sabedoras de si

Dos seus feitiços fizeram argumentos de acusação do mal


Era pra ser um canto de liberdade

E é assim meio tonto, meio vertigem

Canto de banzo, de maresia

Canto de navio, de sequestro, de corrente

De fel da diáspora

Pedaço de saia

Boneca sem olho

Brinquedo acalanto, nas noites do mar


Era pra ser um canto de liberdade

E foi estilhaçado de espelho, sífilis, de roubo, dizimação

Canto silenciado, negado

Sem lugar em meio ás violências todas, os tantos açoites

É também um canto quase réquiem

Pelos companheiros que se foram

Os filhos levados

O sumiço das nossas histórias



E delas fazem

Ficha policial, estatística, categoria diagnóstica


Tentam se apossar

Do nosso útero, da nossa cabeça, do nosso desejo

Da ancestralidade que nos funda

Tentam, mas não conseguirão!


Era pra ser um canto de liberdade

E foi trincado

Trincado pelas grades

Dos manicômios, prisões e conventos


Disseram-nos bruxas, loucas e histéricas

Dizem-nos drogadas, perigosas, macumbeiras, vadias

E somos mesmo!


Era pra ser um canto de liberdade e é-

É um grito, um uivo

Um oceano revolto no olho

Um suspiro, um cansaço


Um suspiro, um cansaço

Da violência do não pertencimento

Da expropriação de nós mesmas

Do saque de todo dia


Mas esse canto, rouco, torto, tonto

Só se faz ponto,

Se firma ponto

Se um verso de uma chama tambor do coração da outra

Pelo o desejo de liberdade de existir

De ser quem a gente é

De não negar as diferenças

De negociar os egos, privilégios


E seguirmos 

Escapando da morte e da prisão

Do patriarcado e do racismo

Fabricando outros espaços-tempo-respiração

Juntas- VIVAS!


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